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02 maio 2010

Antonioni e o silêncio autofalante



Geômetra cartesiano dos sentimentos humanos, Michelangelo Antonioni é um realizador que, com seus filmes, principalmente a trilogia A aventura, A noite, e O eclipse, renovou a linguagem cinematográfica, e introduziu, nela, o domínio da antinarrativa, o silêncio como elemento de produção de sentidos, os tempos mortos como estabelecimentos rítmicos da mise-en-scène. O cinema moderno tem em Michelangelo Antonioni o seu grande impulsionador, principalmente porque instaurou a desdramatização. Se o cinema americano pasteurizou, por assim dizer, a linguagem do filme, privilegiando, na narrativa, somente os tempos fortes, Antonioni introduziu, como peça de estilo, mas, também, de significação, os tempos mortos, quando as expectativas do espectador são frustradas, porque sempre espera que, dada uma determinada situação, aconteça alguma coisa no processo narrativo. Mas o grande realizador, que saiu da cena da vida com idade provecta, 94 anos, deixou uma fortuna crítica considerável e sua influência foi imensa, bastando dizer que todo o Wim Wenders dos anos 70 é puro Antonioni, além das influências exercidas em cineastas de diversos países, a exemplo, no Brasil, de Walter Hugo Khoury, autor do definitivo Noite vazia (1964). Antonioni soube, como poucos, captar o mal-estar do mundo, e se revelou um tratadista da incomunicabilidade entre os homens. Egresso do neo-realismo italiano, na década de 50, assim como Fellini, abandonou a tônica social do movimento para focalizar a angústia do homem do pós guerra, principalmente daquele pertencente à sociedade burguesa italiana. Há, portanto, em Michelangelo Antonioni, uma importância dupla para o cinema, a do ponto de vista do elo sintático (da linguagem), e aquela do elo semântico (do tema). Inovou na sintaxe e inovou, também, na maneira de fazer emergir seus temas recorrentes: a análise perfuratriz da incomunicabilidade na burguesia italiana, o silêncio que se estabelece nas relações humanas, o vazio, e a ausência de perspectivas.


Nasceu em Ferrara (Itália), em 1912. Adolescente, viveu em Bolonha, onde começou seus estudos de economia e letras, que depois seriam substituídos pela arquitetura. Nesta época, já se inicia na crítica cinematográfica, escrevendo alguns ensaios sobre a arte do filme para o jornal IL Corrière Padano. Aficionado pelo tênis, competiu em vários torneios dessa categoria, e, na juventude, ganhou muitos troféus, que, até morrer, guardava-os com especial apreço. O desabrochar do futuro realizador, porém, precisaria esperar a sua transferência para a capital da Itália, Roma, que se deu quando tinha 27 anos, em 1939. Nesta cidade, centro cultural, ainda que sob regime fascista e às vésperas da eclosão da Segunda Guerra Mundial, fez parte da entourage da revista Cinema, publicação oficial que congregava os nomes do futuro neo-realismo: Luchino Visconti, Giuseppe De Sanctis, Vittorio De Sica, Pietro Germi, entre outros. Passou por um período de dificuldades financeiras, mas conseguiu se matricular no Centro Sperimentale di Cinematografia, abrindo-se, então, a oportunidade de escrever vários roteiros e, entre eles, uma colaboração com aquele que viria a detonar o neo-realismo italiano com Roma, cidade aberta: Roberto Rossellini. O jovem Michelangelo se estabelece com maior desenvoltura no meio cinematográfico, colaborando com traduções e críticas para Itália Libera, Film d’Oggi e Film Revista. Trabalhou, nesta ocasião, como assistente de um ícone do cinema clássico francês: Marcel Carné e, por isso, foi enviado à França como representante de Os visitantes da noite (Lês visiteurs du soir), deste diretor. Na volta, vê-se considerado a experimentar a realização de alguns documentários, sendo que, o primeiro deles, Gente Del Pó, tem suas locações nos mesmos lugares aos quais voltaria quando fez, muitos anos mais tarde, O grito.


Logo no seu primeiro longa metragem, Cronaca di um amore (1950), já se pode encontrar os temas que seriam característicos deste que é um dos mais importantes e pessoais realizadores do cinema moderno, as suas constantes temáticas, como a do vazio que se estabelece na relação humana. Dois anos depois, 1952, um filme em três episódios, um na Inglaterra, um na França, e um na Itália, abordando, nestes países, o problema da juventude que privilegia o crime como forma de sobrevivência: Os vencidos/I vinti. A seguir, La signora senza camelie, em que se preocupa de novo por estudar um personagem feminino, outra das características de seu cinema.


Autor de filmes, nunca um mero estilística, ou um artesão, Michelangelo Antonioni já revela sua marca e seu estilo inconfundível nos filmes que se seguem: As amigas (Le amiche, 1955), O grito (Il grido, 1957). Mas é com A aventura (L’avventura, 1959), filme que dá início à sua famosa trilogia da incomunicabilidade, que se consagra, definitivamente, entre a crítica internacional, constituindo-se uma síntese de sua obra anterior e uma espécie de prelúdio dos outros filmes que viriam a seguir, como A noite (1960) e O eclipse (L’eclisse, 1961). A idéia de ficção que, mediante um processo de descascamento narrativo, vai desaguar na água documental, foi uma das grandes constantes do cinema de Antonioni. As imagens finais de O eclipse, por exemplo, já eram documentário. José Lino Grünewald, inclusive, constatou que Antonioni terminava por onde Alain Resnais começava. Ele se referia, sem dúvida, ao processo de descascamento narrativo que, uma vez concluído, só poderia dar lugar ao espetáculo puro – ou seja, O ano passado em Marienbad.


A primeira experiência de Antonioni em cores se deu em O dilema de uma vida (Il deserto rosso, 1964), a retomar, aqui, o tema da incomunicabilidade, que se estabelece dentro de uma mise-en-scène na qual a cor exerce função dramática e de produção de sentidos. A pesquisa da cor no tecido dramático seria exacerbada no filme que fez, em seguida, na Inglaterra: Blow up, que no Brasil tomou o título de Depois daquele beijo. Antonioni exigiu que alguns quarteirões de Londres fossem todos pintados com cores berrantes. Blow up traumatizou duramente os devotos (que não se chame aqui de cinéfilos) do bom cinema nos anos 60. Um filme que expressa o niilismo da juventude de sua época através do personagem de David Hemmings, fotógrafo da moda e de moda, que, bem nutrido, com vida confortável, sente, porém, profundo vazio em sua existência até que, fotografando, por acaso, um casal que se beija num parque, descobre, com a ampliação das fotografias, um crime. Antonioni deixa, porém, a resposta vaga, e a significação que pode de tudo advir é aquela da seqüência final, quando pessoas jogam tênis sem a bola. A influência de Janela indiscreta (Rear window), de Alfred Hitchcock, é evidente, mas, aqui, relida em outro ângulo e em outro prisma.


Não se pode falar em Michelangelo Antonioni sem ressaltar a seqüência derradeira de O passageiro: profissão repórter (The passenger, 1975) e do seu emblemático plano-seqüência no qual a câmera sai do quarto onde está deitado Jack Nicholson, atravessa a janela, circula pelo pátio e volta ao quarto. Quando ela, a câmera, está fora, é que se ouve um tiro com o qual é morto o personagem. Até hoje não se sabe como Antonioni conseguiu realizar este plano, tal o seu virtuosismo, tal a sua habilidade. E em O mistério de Oberwald, como numa premonição, antecipa a estética do vídeo.


Num ensaio escrito para a extinta revista Filme/Cultura (setembro de 1967, número 6 e que renasce, agora, das cinzas, em seu número 50)), o crítico Jaime Rodrigues, discípulo de Moniz Vianna, estabeleceu com rara felicidade as características do cinema de Michelangelo Antonioni. Um estilo que se define mais por determinadas linhas de ação que por variações em torno de um mesmo tema. Cineasta amargo, mas que procura reencontrar uma linguagem comum aos seres humanos. Em seus filmes, patente, a integração do indivíduo e ambiente: os objetos, as coisas – o mundo industrializado, enfim, fazendo parte do millieu humano. Antonioni constata a caducidade dos valores do nosso tempo numa pesquisa intensa para chegar a novas formas de compreensão.


Rodrigues vê nos filmes de Antonioni o último eco do expressionismo pelas construções, com os objetos dominando o ambiente. E, neste particular, vale lembrar que, sendo Antonioni um arquiteto, seus enquadramentos são estudados, perfeitos, primorosos, E, no frigir dos ovos, é o neo-realismo passado a limpo: as implicações dos desajustes sociais sobre a estrutura psicológica do homem. E a certeza de que os problemas da consciência são, sobretudo, problemas de reflexão diante do mundo.
Imagem: Maria Schneider e Jack Nicholson em Passageiro: profissão repórter.

3 comentários:

CHICO VIVAS disse...

Um jovem jornalista, ainda cheio de "ideias", talvez ficasse tentado, mas, cheio também de "normas", hesitasse em usar a frase "Geômetra cartesiano dos sentimentos humanos".Um jovem crítico (de cinema ou não), cheio de ideias sobre a obra em análise, talvez achasse desperdício de espaço escrever assim, quando tem tanto a dizer (de seu). Acho que é preciso ter deixado de ser jovem (e isso, ao contrário da "onda", é bom) para dar às suas ideias, mesmo que a essa altura já não sejam tantas, a expressão correta.

Confesso que não entendo tanto (de) Antonioni - mas como creio que ele não concebeu sua obra para ser "cartesianamente" entendida, embora possa tê-la concebido rigorosamente assim, concluo que meu sentimento de desconforto é a própria compreensão.

André Setaro disse...

A expressão 'geômetra cartesiano dos sentimentos humanos' revela o meu pedantismo encruado e recôndito do qual estou a tentar me livrar.

GILBERTO HABIB OLIVEIRA disse...

Geometra ou não, cartesiano ou não, com certeza o silencio na obra de Antonioni é autofalante, e nisso o titulo da matéria é muito feliz. Mais do que isso, este silêncio sempre é lindamente eloquente. Acabo de ver seu filme O Misterio de Oberwald (1981) e cada vez mais me apaixono por este poeta/artista/diretor, e considero louvável qualquer elogio a ele. Elogios que não permitirão que sua obra caia no esquecimento.