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21 março 2012

Do cinema que se diz baiano


Tudo começa com Redenção. Iniciado em 1956, o filme, que vem a ser o primeiro longa baiano, leva três anos para ser concluído e exibido em noite de gala no cinema Guarany, em abril de 1959. (como mostra um trecho do documentário de Petrus Pires e Paulo Hermida, com todos os presentes em traje a rigor, como era costume na época). Roberto Pires já tinha feito algumas experimentações amadorísticas em curtas como O calcanhar de Aquiles e Sonho. Seu pai tem uma ótica, a Mozart, e, nela, Roberto, fascinado com o cinemascope de O manto sagrado (The robe), que vê no mesmo Guarany no qual seria apresentado o seu primeiro longa, resolve investigar, na ótica do pai, para fazer uma lente anamórfica igual à lente do cinemascope. Desde já, além de um pioneiro, um inventor.
Mas Roberto Pires trabalha com alguns amigos (Oscar Santana, entre eles), mas não está vinculado às pessoas que discutem cinema no clube de Walter da Silveira, como Glauber Rocha, Luis Paulino dos Santos (autor de Um dia na rampa), entre outros. É somente a partir da estréia de Redenção que as pessoas começam a se aproximar dele. Porque ficam impressionadas com a concretização de um sonho: a realidade de um filme baiano de longa metragem projetado na tela de um cinema de escol como o Guarany.
Há, nesta época, pessoas que se interessam pelo cinema. Rex Schindler é um deles e se encontra, numa tarde, no escritório de Leão Rosemberg, com Glauber Rocha, então crítico de cinema do Jornal da Bahia, mas que não o conhecia pessoalmente. Este encontro ocasional entre Rex Schindler e Glauber Rocha dá início ao que mais tarde seria chamado deCiclo Baiano de Cinema. Glauber, que já tem prontos dois curtas, O pátio e Cruz na Praça (desaparecido), não tem experiência prática e chama Roberto Pires para fazer parte do grupo. Schindler e Rocha, a ver o exemplo de Redenção, sonham na viabilidade e exequibilidade de se implantar, na Bahia, uma infra-estrutura cinematográfica. E surge a Escola Bahiana de Cinema, que se estabelece com propostas e um cronograma mais ou menos definitivo. Schindler, associado a outros produtores, produz Barravento, que, incialmente é dirigido por Luis Paulino dos Santos e depois, por força de umgolpe (segundo se propaga), a direção é dada a Glauber e o roteiro completamente reescrito em parceira com o esquecido José Telles de Magalhães. Segundo Schindler, Paulino quer uma mudança mística enquanto a idéia de Glauber é no sentido de, como diz o próprio título, uma mudança social.
O fato é queBarravento demora quase três anos para ser lançado, o que ocorre em 1962, depois do lançamento de A grande feira. Glauber leva ao Rio o copião debaixo do braço para ver se Nelson Pereira dos Santos consegue montá-lo.
Estabelecidos os postulados da Escola Bahiana de Cinema, entre os quais a procura de um cinema com raízes na cultura local sem a perda, contudo, do caráter universalista, o projeto se centraliza na criação de uma infra-estrutura capaz de que fossem realizados filmes de forma continuada e sistemática. O lucro de um seria investido no seguinte, e assim por diante. Num esquema de rodízio entre os diretores. Glauber Rocha assume Barravento e, assim, a seguir o cronograma, A grande feira, com argumento de Rex Schindler, é roteirizado e dirigido por Roberto Pires. O próximo, Tocaia no asfalto, tem programado Glauber Rocha na direção, mas este vai ao Rio montar Barravento e já cogita, no sul do país, a produção de Deus e o diabo na terra do sol, que seria realizado em 1963, com recursos oriundos da produtora de Jarbas Barbosa, a Copacabana Filmes. Além do mais, Glauber lança, por esta época, o manifesto do Cinema Novo no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil editado por Reynaldo Jardim.
A Bahia se torna uma Meca do Cinema, como diz o historiador renomado Georges Sadoul no jornal Les Lettres Françaises. E se torna um pólo aglutinador para cineastas do sul que aqui aportam na esperança de explorar o seu décordeslumbrante. Um dos pioneiros nesse sentido é Trigueirinho Neto, que faz Bahia de Todos os Santos, mas com intenções sérias, de análise dos conflitos sociais de uma sociedade. Não pretende Trigueirinho a exploração do décor, mas, ao contrário, a sua desmistificação. Outros, porém, gananciosos, possuem outros propósitos como a busca do exotismo tropical como faz o francês Robert Mazoyer que, baseado num argumento de Jacques Viot, realiza aqui O santo módico, sobre um jovem pescador desiludido que, apaixonado por uma bela mulher, é abandonado por esta que o troca por outro. Em torno da população, uma imagem sacra que parece solucionar problemas de toda ordem. Viot pretende focalizar a superstição de um povo subdesenvolvido que é manejado por forças ocultas. No elenco, atores baianos entre outros estrangeiros e brasileiros: Irene Boriski, Edgard Carvalho, Heitor Dias, Jorge dos Santos, Gessy Gesse, Zezé Macedo, Leny Eversong, Maria Lígia, Oscar Santana, Léa Garcia, Breno Mello, Jurema Penna, José Telles de Magalhães, Lídio Silva, etc. Ruy Guerra funciona como assistente de direção e a iluminação está a cargo de dois profissionais de alta competência: Roger Blanché e Andréas Winding. Com assistência de Hélio Silva. O filme, porém, está desaparecido.
Assim, Glauber não tem condições geográficas de dirigir no asfalto, como está planejado, que é entregue a Roberto Pires em 1961, ano do lançamento de A grande feira em Salvador, a alcançar uma bilheteria sem precedentes, superando, inclusive, o grande êxito do cinema mundial: Ben Hur, de William Wyler, com Charlton Heston. Os baianos vão em massa ver A grande feira, lançado, com festa, em duas salas: uma de primeira linha, o Capri, e outra mais popular, o Jandaia.
Por que Rex Schindler não produz Deus e o diabo na terra do sol, a precisar Glauber ir ao Rio buscar recursos? Segundo se conta, porque Schindler, ao invés de patrocinar a obra glauberiana, prefere investir numa co-produção de Portugal e Brasil: A montanha dos sete ecos, todo filmado em Cachoeira, cidade histórica, importante na consolidação do 2 de Julho de 1823, quando se dá, realmente, a completa independência brasileira iniciada em 7 de setembro de 1822 (independência, vírgula, bem entendido, pois apenas a dívida portuguesa com a Inglaterra, a dona do mundo naquele momento, passou para o Brasil). A montanha dos sete ecos, de um tal de Armando de Miranda, chega a ser exibido em algumas capitais. Um filme de aventuras com atores baianos como João Di Sordi, Roberto Ferreira (o Zé Coió, o Zazá de A grande feira), João Gama, Milton Gaúcho, Jota Luna, José Telles de Magalhães (que funciona também como diretor de produção). O principal não é da Bahia: Milton Morais.
A Escola Bahiana de Cinema, que tem Schindler como principal produtor, ao lado de David Singer e Braga Neto, tem, a rigor, os seguintes filmes: Barravento, A grande feira, e Tocaia no asfalto. Outros filmes considerados genuinamente baianos, no entanto, aqui são feitos, como O caipora (1963), de Oscar Santana, produzido por Winston Carvalho, sobre um azarento (Carlos Petrovich), um caipora (como se denomina no interior), que se apaixona pela filha do coronel local (Milton Gaúcho), mas sofre o preconceito e a discriminação da população local. Ainda no elenco, Maria Adélia (em impressionante caracterização), Iva Di Carla, João Di Sordi, Garibaldo Matos (que depois se tornaria juiz de futebol), Leonel Nunes, Jurema Penna, Conceição Senna, Lídio Silva (o beato Sebastião do filme de Glauber), José Telles de Magalhães (este está em todas). A fotografia (em excelente preto e branco) é de Giorgio Attili, montagem de Roberto Pires (amigo de Oscar desde os primórdios) e como diretor de produção um futuro cineasta: Agnaldo Siri Azevedo.
Outro filme genuinamente baiano é Sol sobre a lama (1964), uma produção de João Palma Neto, que, antigo feirante e sindicalista, considera que A grande feira trata superficialmente a questão do drama da feira de Água de Meninos. Decide, então, com dinheiro do próprio bolso, dar uma espécie de resposta a A grande feira. O filme tem roteiro escrito por Miguel Torres (que falece em acidente logo depois), e, para dirigi-lo, Palma chama Alex Viany. O resultado final não agrada ao produtor e a questão acaba na justiça. Há, desse filme, uma versão de Viany, a que passa no lançamento no Guarany, e uma versão de Palma Neto. Sol sobre a lama, na versão do crítico carioca Viany, é muito influenciado pelo cinema japonês pelo qual o cineasta está apaixonado e contraria o sentido de timingquerido pelo produtor. Mas se constitui um sucesso, uma produção mais ambiciosa. A fotografia (em deslumbrante colorido) é do consagrado Ruy Santos. Vinicius de Morais coloca a letra noLamento de Pixinguinha especialmente para este filme, que tem no elenco Othon Bastos, Geraldo D'El Rey, Jurema Penna, Dilma Cunha, Roberto Ferreira, Milton Gaúch, Gessy Gesse (que se tornaria a sexta ou sétima mulher do poetinha), Maria Lígia, Garibaldo Matos, Glauce Rocha, Lídio Silva, Carlos Petrovich, Antonio Pitanga, Doris Monteiro...
Em Feira de Santana, Olney São Paulo deseja filmar a novela Caatinga, do fazendeiro Cyro de Carvalho Leite, e encontra neste o apoio para realizar O grito da terra (1964), canto de cisne do Ciclo Baiano de Cinema. Filme sobre o drama de homens e mulheres que vivem a violência e a fome do sertão agreste, O grito da terra tem, no seu cast, Helena Ignês, João Di Sordi, Eládio de Freitas, Augusta São Paulo, Lídio Silva, Orlando Senna, entre outros. Fotografia de Leonardo Bartucci. E partitura musical do maestro Remo Usai, que faz também a música deA grande feira e Tocaia no asfalto. Aluno de Miklos Rosza, Usai é um partiturista de alto nível que vem a valorizar muito os filmes baianos.
Anselmo Duarte filma O pagador de promessas nas escadarias da Igreja do Paço, Nelson Pereira dos Santos, que faz Mandacaru vermelho, porque, indo realizarVidas secas nas Alagoas, acontece chover torrencialmente, impossibilitando o projeto, e, para não perder a viagem, vem a Bahia e realiza este nordestern meio improvisado que o tem como mocinho.
Interessante observar que embora alguns filmes baianos atuais tenham recebido prêmios em festivais, a exemplo de Eu me lembro, de Edgard Navarro, Samba Riachão, de Jorge Alfredo, estes filmes são vistos por uma elite e não alcançam o grande público, apesar de estreados em salas dos complexos. A explicação é simples e repetida: atualmente, o povo não vai mais ao cinema como nos idos dos anos 60.

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