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18 agosto 2013

Inácio, o vendedor de ilusões

            Obrigado, Modesto
Por Carlos Modesto

Quando o cinema, como casa de projeção, possuía o encantamento de atrair para os seus salões a diversidade de público, nasceu entre este, um tipo exclusivo do verdadeiro cinéfilo de carteirinha, denominado devorador de filmes, ou seja, aquele amante dos celuloides, maratonista, frequentador assíduo dos vários cinemas dos bairros e do centro da cidade.

A criança e adolescente desse pretérito, atualmente na terceira idade, passando pelo crepúsculo da vida, enquadrado no perfil acima, há de recordar rapidamente da personalidade humana, ora tributada e participante ativo da história dos cinemas de Salvador.

Os cinemas pululavam em cada canto urbano, e para ser completo o local tinha por obrigação de existir nele, pelo menos uma casa exibidora de filmes. Nossa cidade, embora fosse uma capital, sua característica era provinciana. A vida era bela, os bondes deslizavam sobre seus trilhos de aço, distribuídos através de suas linhas traçadamente delineadas. O technicolor das raças, ainda era bem visível na população. O chapéu de Panamá, o brim Diagonal de cor branca vestia do mais seleto cavalheiro ao mais simples operário. A famosa Rua Chile, a mais chic da cidade, com suas lojas inesquecíveis, era o recanto dos milionários e da classe média. Todos se conheciam, não existia a violência nem drogas, e nessa vivência democrática, os tipos populares complementavam a alegria de viver da população baiana. E entre esses últimos bradava em alto e bom som o nome de Cuíca de Santo Amaro, através dos seus folhetins de cordel.

Nesse espaço multicor, não poderia jamais esquecer a amizade de um homem, semeador das minhas imensas alegrias, durante o verdejante tempo da minha adolescência: o velho e inesquecível Inácio. Ele foi um dos últimos tipos populares da nossa antiga urbe. Na juventude foi sorveteiro de cantimplora (recipiente ainda utilizado para resfriamento e até hoje visto nas calçadas da subida da Ladeira de São Bento, no inicio da Avenida Sete de Setembro), onde em frente aos colégios principais dos diversos bairros vendia o seu sorvete. No curso da profissão abarcada, foi contaminado pelo bacilo da tuberculose, obrigando-o a deixá-la. Após a cura da enfermidade, procurou outros meios de sobrevivência, através de trabalhos diversos, como entregador de panfletos das propagandas dos filmes, em porta em porta das residências e bilheteiro de casa de projeção. E, finalmente, vendedor de fitas de cinema.

Inácio era um conhecedor de cinema, havia frequentado suas sessões na fase silenciosa, recordando os velhos filmes de sucessos e seriados desse período, familiarizando-se com os nomes dos astros e estrelas famosos. Na separação dos fotogramas para o seu comércio, distribuía com certos critérios, e, sabia escolher os mais valiosos para oferecer aos mais exigentes cinéfilos, buscadores de close-ups de artistas famosos e de seus filmes marcantes, para completarem suas coleções.

Quando conheci o Inácio, o mesmo já passava dos cinquenta anos de idade. Ele era descendente afro e fazia ponto nas portas dos salões cinematográficos mais frequentados. Um dia era no saudoso “Jandaia”, no dia seguinte, partia para o “Aliança” ou “Pax”, situados na Baixa dos Sapateiros. E, assim, na sua maratona, corria pelas principais casas exibidoras, vendendo o seu produto sedutor, os inesquecíveis pequeninos fotogramas de 35 milímetros, embutidos em caixas de fósforo e, também, binóculos de madeira, adaptados com uma lente de óculos e num corte retangular na parte frontal, proporcional ao tamanho da fita, sendo a mesma presa por dois suportes para segurá-la. Olhando através do orifício se via uma imagem ampliada do quadro em questão. Essa peça artesanal era projetada e manufaturada pelas suas próprias mãos. A meninada, além de gostar das histórias em quadrinhos, o procurava no intuito de comprar as caixinhas com fotogramas de cenas dos diversos filmes da época. O Inácio conseguia esses pedaços ou rolos de películas, através dos refugos de trechos danificados das distribuidoras, ou com operadores de cinema, conhecidos.

Assim conheci esse espécime humano, educado, bondoso, e fazia de tudo para alegrar a criançada amante da arte cinematográfica. Tornei-me seu assíduo comprador e amigo, onde no fim da sua vida quando ele vivia no Asilo D. Pedro II, fiz-lhe uma justa homenagem com um simples documentário sobre ele, denominado, INÁCIO, O ÚLTIMO VENDEDOR DE ILUSÕES.   

Levava-me ele aos possuidores de projetores de cinema caseiro, resolutos em vendê-los, e entre esses, alguns eu consegui negociar através do seu intermédio, sem nenhuma remuneração da sua parte como comissão.

Para os mais interessados em adquirir sua mercadoria, nos dias de semana, ele podia ser encontrado sentado num banco da Farmácia Duarte (se não me falha a memória), instalada na Baixa dos Sapateiros, em frente à Rua 28 de Setembro, e colada à Praça dos Veteranos, acompanhado de um usado saco de cimento, com os acessórios de venda dentro. Quando não se achava ali, estava ele em seu outro ponto, ao lado do Relógio de São Pedro.

No final da década de 1950, parti para viver na cidade do Rio de Janeiro, e nas vezes quando ia assistir a um filme, lembrava-me sempre dele.  Retornando em 1963, procurei vê-lo, no entanto, não o encontrei. Seguindo informações sobre seu paradeiro através de diversos amigos, fui achá-lo no albergue acima citado, passando a visitá-lo periodicamente. Antes de morrer deixou-me como herança, sua caixa metálica com um binóculo de madeira, algumas caixas de fósforo composta de fotografias de celuloide, que guardo com carinho até hoje.

Muitos foram essas crianças e adolescentes que se tornaram adultos e famosos nas diversas profissões a artes, adquirentes em potencial desses pequenos “Box” de fósforo, cheias com pedaços de fitas cinematográficas, cujo prazer de possuí-las era de uma emoção indescritível, e, só será entendido, no interior, daqueles que um dia conheceram essa alma sincera. Mas morreu só, esquecido, no asilo que o amparou em seus últimos momentos de vida, mas o verdadeiro cinéfilo daquela era dourada guardará para sempre em seu coração, a imagem de INÁCIO, o vendedor de ilusões.

P. S. – Esta pequena crônica é dedicada ao meu amigo André Setaro, feita na manhã de domingo, 16-08-2013, em Salvador, Bahia. 



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