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18 fevereiro 2014

Dos cinemas de antigamente

Para quem viveu a época dos chamados cinemas de rua, quando as imagens em movimento eram restritas às salas escuras mediante o pagamento de um ingresso, havia uma atmosfera especial em cada um deles, um estilo arquitetônico particular, que gerava climas diversos. Há um livro, Um cinema chamado saudade, de Geraldo Leal e Luis Leal Filho, que mostra a quantidade de salas que Salvador tinha em relação a casas exibidoras atuais. Documento importante, um registro dos mais valiosos, Um cinema chamado saudade encontra-se, infelizmente, completamente esgotado. Verdadeira história dos cinemas na Bahia (o cinema, bem entendido, como casa de espetáculo), a publicação, dos autores, teve, porém, circulação restrita. Não seria o caso de as instituições que se dizem culturais tentar republicá-lo em uma nova edição? A Secretaria de Cultura deveria estar atenta para isso.

Mas, o fito dessa coluna é fazer um pequeno e breve inventário da memória dos antigos cinemas baianos naquilo que ficou nos arcanos de minha memória. Pequenas coisas, mas que se fixaram na minha imaginação de cinéfilo impertinente e assíduo. Como dizia Jack, o Estripador, vamos por partes:

A corrente do cinema Liceu. Nos últimos quinze minutos da sessão de um filme, era colocada uma corrente na descida das escadas que dava para a sala de exibição. Porque geralmente chegava mais cedo, ficava sentado na excelente sala de espera, aguardando o início da projeção e ficava a olhar para aquela corrente. Que era aberta somente quando, terminada a sessão anterior, já prestes a começar a seguinte. As pessoas, apinhadas na sala, de repente, aberta a corrente, desciam escadas abaixo para pegar uma poltrona mais em conta

A cortina sebosa do cinema Aliança. Situado na Baixa dos Sapateiros, o citado cinema era um autêntico 'poeira': cadeiras de madeira, ar renovado que proporcionava intenso calor, cheiro de urina insuportável, mas que, na ânsia de ver filmes, os cinéfilos aguentavam para sentir a magia dos espetáculos cinematográficos. Mas no Aliança havia, para se entrar, que se adentrar por uma cortina extremamente sebosa, que deixava na roupa o seu odor repugnante. Havia de se ter de driblar a cortina para não se 'contaminar' com o seu contato. Mas era tarefa impossível. Por mais que se tentasse, sempre ficava na roupa do cinéfilo, impregnado, o cheiro de suas sujeiras. Sacrifício monumental.

3.)Em torno de 1964, o cinema Pax, também situado na Baixa dos Sapateiros, estava lotado numa sessão dominical pela tarde. Era perto das festividades do São João. O Pax lotado significava que havia gente saindo pelo ladrão, e o cinema era enorme: uma platéia e dois balcões. De repente, uma casa de venda de fogos explodiu nas circunvizinhanças da sala exibidora e os espectadores pensaram que era o Pax que estava a explodir. Pânico geral. Algumas pessoas morreram pisoteadas. Uma verdadeira tragédia. Semana depois, indo ao Pax, vi manchas de sangue no chão de ladrilhos. Nesta sala, entrava-se 'pela tela' ao contrário dos outros cinemas. Fiquei, por um bom tempo, com 'medo' do Pax, ainda que continuasse a frequentá-lo todas as semanas.

4.)Salvador era uma beleza: calma e provinciana. Andava-se muito e se chamava o andar de 'paletar'. Frequentei muito os cinemas Brasil e São Jorge, que eram situados no Bairro da Liberdade (a famosa rua Lima e Silva). Cinemas de segunda classe, mas tinham programas duplos, quando não triplos, e o ingresso era baratíssimo. O povo, naquela época, ia muito ao cinema, ao contrário dos dias atuais quando ir ao cinema se constitui um lazer da elite, considerando os preços astronômicos. Um ingresso para uma sala dos complexos (Multiplex ou Cinemark) é mais caro do que o ingresso para o melhor cinema de Nova York.

5.)Certa ocasião, no São Jorge, o exibidor resolveu passar filmes pornográficos na sessão de meia-noite. Depois de duas semanas, a polícia promoveu uma intervenção, proibindo as exibições. Pouco tempo passou e Walter da Silveira, do Clube de Cinema da Bahia, combinou com o exibidor Francisco Pithon a realização de sessões à meia-noite de filmes de arte. As pessoas, ainda surpreendidas com o noticiário em torno das sessões do São Jorge, pensaram que os filmes programados fossem pornográficos. Mas qual nada! O túmulo do sol, película de origem japonesa, poética, nada tinha de pornográfica. Muito pelo contrário. Walter surpreendeu-se pelas filas que se formavam desde as 23 horas, pois nunca pensaria num público tão imenso para ver filmes ‘de arte’. Cinema lotado, começada a sessão, mal tinha passado meia hora, quando os espectadores começaram a perceber que não se tratava da ‘putaria’ querida. E quebraram todas as cadeiras do Guarany. Pithon encerrou as exibições. Foi a única experiência nesse sentido.

6.) Anos se passaram e a sessão de meia-noite foi instituída com êxito no cinema Bahia, à Rua Carlos Gomes. Os filmes programados eram os que seriam lançados semanas depois. Lembro-me de ter assistido Morte em Veneza, de Luchino Visconti, numa dessas sessões. Depois se tinha o hábito de ir ao Rose’s, bem em frente à sala exibidora, que inaugurava na Bahia a venda de cheesburgueres. Quem se lembra do Rose’s da Rua Carlos Gomes?


2 comentários:

Andrea Ormond disse...

Setaro, não conheci pessoalmente esses cinemas de Salvador, mas me senti transportada para lá. Tenho um interesse grande pela observação (antropológica) dos hábitos. O fato de ir ao cinema, quem ia, os rituais, o que acontecia. Grande texto!

Luis Leal Filho disse...

André Setaro,

Seu texto é simplesmente extraordinário, independente da citação que faz do meu nome e do meu falecido tio Geraldo da Costa Leal, que agradeço devido aos seu olhar crítico generoso. Sua análise, de cunho antropológica, marcada por constatações de valor sócio econômico muito me impressionou. Sua abordagem sobre os cinemas de bairro, o fim dos mesmos, a padronização dos cinemas "caixa-de-fosforo", é de uma riqueza extraordinária. Felicito-o e, creio, caso estivesse vivo, meu querido e inesquecível tio, lhe transmitiria nossa gratidão pelas significativas palavras a respeito do nosso livro. Nossa visão sempre foi a visão do espectador que vivenciava o fechamento paulatino das salas de cinema que eram verdadeiros centros sociais, nos bairros desta cidade. Uma beleza de texto. Aceite um forte abraço do seu admirador,

Luis Leal Filho